ARTIGO PSJ

A Relativização da Impenhorabilidade das Verbas Salariais no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Portela Soluções Jurídicas

Escritório de Advocacia

A proteção legal conferida pelo Código de Processo Civil aos salários, vencimentos, subsídios e demais rendimentos visa a assegurar aos trabalhadores a manutenção de sua subsistência. Dessa forma, busca-se garantir os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção ao salário e o dever de proteção da família. Entretanto, tal garantia não é absoluta.


O Código Processual de 1973, no inciso IV do artigo 6491, continha a previsão de que verbas salariais seriam absolutamente impenhoráveis, ou seja, diante de um processo de execução, não seriam passíveis de apreensão para fins de satisfação de um crédito. No entanto, toda regra possui uma exceção e, neste caso, essa exceção residia na possibilidade de penhora para o pagamento de dívidas decorrentes de prestação alimentícia.


O intuito do legislador ao estabelecer essa exceção à regra em questão - caracterizada como absoluta - foi garantir as mesmas proteções constitucionais que deram origem à instituição da impenhorabilidade dos rendimentos de natureza salarial. Isto porque, não há como se falar em dignidade da pessoa humana e no cumprimento do dever de proteção da família estando diante da ausência de pagamento regular de pensão alimentícia.


Na hermenêutica constitucional, esta ponderação de princípios incidentes em um mesmo contexto é crucial para alcançar a finalidade do direito por meio dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Sendo assim, em determinadas situações, a importância da aplicação de um princípio pode ser relativizada a depender de um contexto particular.


Deste modo, o Código de Processo Civil de 2015 ao recepcionar as normas de impenhorabilidade de verbas salariais suprimiu o termo

“absolutamente” e excetuou mais uma hipótese de penhora em seu parágrafo segundo do artigo 833. Vejamos:



“Art. 833. São impenhoráveis:

[...]

IV - os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;

[...]

X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

[...]

§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º.”


Com isso, deu-se início a uma crescente relativização desse instituto ao permitir a penhora de rendimentos para o pagamento de dívidas não alimentícias, estabelecendo o limite de 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais como parâmetro que, se ultrapassado, poderia resultar na constrição.


Ocorre que, a partir de um julgamento principiológico, a jurisprudência pátria passou a mitigar ainda mais a impenhorabilidade de verbas remuneratórias ao ponderar os princípios da efetividade da execução e o da menor onerosidade do devedor. Dessa forma, surgiram precedentes de penhora de verbas salariais em situações diversas das previstas no § 2º do artigo 833 do CPC/2015.


Nesse sentido, também entendeu o doutrinador Daniel Amorim Assumpção Neves ao abordar o tema. Vejamos:


"Sempre critiquei, de forma severa, a impenhorabilidade de salários consagrada no art. 649, IV, do CPC/1973, que contrariava a realidade da maioria dos países civilizados, que, além da necessária preocupação com a sobrevivência digna do devedor, não se esquecem que salários de alto valor podem ser parcialmente penhorados sem sacrifício de sua subsistência digna. A impenhorabilidade absoluta dos salários, portanto, diante de situações em que um percentual de constrição não afetará a sobrevivência digna do devedor, era medida de injustiça e deriva de interpretação equivocada do princípio do patrimônio mínimo."2


Entretanto, tal entendimento encontra resistência doutrinária por essa interpretação ampla, realizada pelo jurisdicionante, ser diversa do expressamente previsto na lei e dos parâmetros estabelecidos pelo ratio legis, além de conceder às dívidas comuns o mesmo status diferenciado das dívidas alimentares.3


A bem da verdade, ao considerar a morosidade presente na fase de execução, relativizar a impenhorabilidade de verbas remuneratórias, a fim de alcançar valores inferiores ao limite legal, é essencial para assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana, beneficiando não apenas o devedor, mas também o credor.


Isso porque, a finalidade da impenhorabilidade reside na proteção da subsistência, logo, ao se preservar o suficiente para garantir a dignidade do executado e de sua família, não há que se falar em lesão aos direitos do devedor que fundamente uma aplicação obtusa da lei.


Assim posto, em virtude da divergência de entendimentos na jurisprudência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça - que é responsável por decidir quando há interpretação divergente entre os órgãos especializados do Tribunal – ao julgar Embargos de Divergência em REsp nº 1874222, pacificou a relativização da regra de impenhorabilidade do artigo 833 do CPC.


PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA. PERCENTUAL DE VERBA SALARIAL. IMPENHORABILIDADE (ART. 833, IV e § 2º, CPC/2015). RELATIVIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. CARÁTER EXCEPCIONAL. 1. O CPC de 2015 trata a impenhorabilidade como relativa, podendo ser mitigada à luz de um julgamento princípiológico, mediante a ponderação dos princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, ambos informados pela dignidade da pessoa humana. 2. Admite-se a relativização da regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial, independentemente da natureza da dívida a ser paga e do valor recebido pelo devedor, condicionada, apenas, a que a medida constritiva não comprometa a subsistência digna do devedor e de sua família. 3. Essa relativização reveste-se de caráter excepcional e só deve ser feita quando restarem inviabilizados outros meios executórios que possam garantir a efetividade da execução e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição na subsistência digna do devedor e de seus familiares. 4. Ao permitir, como regra geral, a mitigação da impenhorabilidade quando o devedor receber valores que excedam a 50 salários-mínimos, o § 2º do art. 833 do CPC não proíbe que haja ponderação da regra nas hipóteses de não excederem (EDcl nos EREsp n. 1.518.169/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe de 24.5.2019). 5. Embargos de divergência conhecidos e providos. (STJ - EREsp: 1874222 DF 2020/0112194-8, Relator: JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 19/04/2023, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 24/05/2023)


O Ministro João Otávio de Noronha, relator do caso, argumentou em seu voto que o limite de 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais destoa da realidade da remuneração brasileira, tendo em vista que poucos auferem tal remuneração no país, tornando a previsão praticamente ineficaz, além de não atingir a finalidade do instituto.


Portanto, mostra-se plenamente cabível a relativização do § 2º do art. 833 do CPC, a fim de autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários-mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto. Essa medida, no entanto, deve ser adotada desde que assegurado um montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.


É importante salientar, contudo, que essa relativização assume caráter excepcional. Deve-se recorrer a ela somente quando outros meios executórios forem inviáveis para assegurar a efetividade da execução. Repete-se a necessidade de avaliar concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado antes de aplicar tal medida.


Em conclusão, a decisão da Corte Especial do STJ trouxe maior segurança jurídica ao pacificar a relativização da regra de impenhorabilidade, buscando conciliar os interesses das partes envolvidas no processo de execução. Dessa forma, quando necessária, não apenas resguarda os direitos do devedor e de sua família, mas também promove a proteção dos direitos do credor, contribuindo para a eficácia do sistema jurídico como um todo.