ARTIGO PSJ

Alienação Fiduciária – STJ Decide pela Desnecessidade do Registro em Cartório de Imóveis

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1. Introdução | 2. A função do Registro na Alienação Fiduciária | 3. Análise de Jurisprudência | 4. Conclusão - Impactos para as Partes

1. Introdução

No ordenamento jurídico brasileiro, coexiste um duplo regime jurídico acerca da propriedade fiduciária, a saber: (i) o regime descrito no Código Civil referente à propriedade sobre coisas móveis e infungíveis, com o credor sendo qualquer pessoa natural ou jurídica e (ii) o regime jurídico especial que trata da propriedade fiduciária sobre bens imóveis, positivado com a formulação da Lei no 9.514 de 1997, criando um Sistema de Financiamento Imobiliário e a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, disposto como direito real no artigo 17.

Desse modo, em relação aos imóveis, facilitou-se o acesso, pela população em geral, ao crédito para compra desses bens, tendo em vista a redução do risco do credor fiduciário, uma vez que constitui em seu favor uma propriedade resolúvel sobre o imóvel em caso de inadimplência do devedor, a fim de garantir uma outra obrigação, o empréstimo.

Nessa linha de raciocínio, diversos casos decididos pelos tribunais deliberaram acerca da validade do contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária, sem o registro no Cartório de Registro de Imóveis Competente (Decreto-Lei no 911/69, Lei no 9.514/97 e Código Civil). O registro do contrato destina-se a conceder a oponibilidade dos efeitos erga omnes, ou seja, de modo a torná-lo oponível a terceiros, e conferir ao contrato e a sua função social eficácia externa, não se limitando apenas às partes contratantes.

2. A Função do Registro na Alienação Fiduciária

É evidente que o registro não possui a função de validar o contrato firmado, os seus direitos e obrigações são protegidos de modo independente, não sendo necessário o registro para que a garantia seja reconhecida entre as partes contratantes. Com efeito, conforme dispõe o artigo 23 da Lei no 9.514/97, o registro, na prática, seria imprescindível para constituir a propriedade fiduciária do imóvel e dar início à alienação extrajudicial, já que apenas com ele se constituiria em mora o devedor e sua eventual purgação. Entretanto, sua ausência não retiraria a validade e eficácia dos termos ajustados contratualmente, entre eles a cláusula de autorização para a alienação extrajudicial em caso de inadimplência, ou seja, a cláusula que conferiria ao credor a propriedade. Esse é o entendimento da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O Art. 23 da lei especial discorre: “Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título”, bem como o Código Civil em seu artigo 1.227 prevê: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos". Apesar da função constitutiva da propriedade do registro, empregada pelos artigos relatados, a validade e eficácia do negócio jurídico, ou seja, do contrato de compra e venda, entre os contratantes, não são afetadas pelo registro. A ausência de registro não transforma o direito real em simples contrato de compra e venda sem pacto de alienação fiduciária, apesar de identificá-lo.

3. Análise de Jurisprudência

No Recurso Especial no 1.866.844/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, julgado em 27 de setembro de 2023 pela segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, o caso originou-se quando os compradores ajuizaram ação de rescisão do contrato e pediram a devolução dos valores pagos. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu pela procedência do pedido, indicando a necessidade do registro para a constituição do direito real e indicando a desistência imotivada dos compradores, com aplicação da Súmula 543 do STJ em detrimento da Lei 9.514/1997, diante da falta de registro da alienação fiduciária. Dispõe a súmula:

Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.

Em oposição posterior às decisões proferidas pelas instâncias dos tribunais, a credora fiduciária interpôs, por fim, embargos de divergência, apontando discordância entre o julgamento da Quarta Turma e o proferido pela Terceira Turma, em que o registro foi considerado desnecessário para o reconhecimento do pactuado, entendendo que a sua função seria unicamente dar ciência a terceiros, apesar de versarem sobre a mesma questão jurídica e apresentarem circunstâncias fáticas idênticas. Assim, os embargos foram direcionados à Segunda Seção para ser julgado, resolvendo-se, em acórdão, pela não necessidade do registro no Registro de Imóveis. O escopo deste, vide o entendimento da ministra Nancy Andrighi, é, “primordialmente, resguardar o contratante em face de terceiros que almejam sobre o imóvel em questão direito incompatível com a sua pretensão aquisitiva”.

4. Conclusão - Impactos para as Partes

O posicionamento jurisprudencial abordado neste artigo opera em favor de ambas as partes.

Isso porque, com a constituição da propriedade fiduciária e o desdobramento da posse, o credor não pode dispor livremente sobre o bem, podendo aliená-lo apenas diante da inadimplência do devedor e a consolidação da propriedade, garantindo-se, assim, a segurança jurídica e evitando-se que o credor requeira o distrato sem o inadimplemento.

Por outro lado, reconhece o direito do fiduciário em utilizar as cláusulas contratuais de execução da garantia em caso de inadimplência, mesmo que o contrato não tenha sido levado a registro, seguindo o procedimento do artigo 26 e seus parágrafos, da Lei no 9.514/97. Nesse contexto, tanto a intimação do devedor fiduciante, quanto a constituição de sua mora devem ser realizadas perante o competente Registro de Imóveis. Em caso de não purgação da mora consolida-se a propriedade do bem em nome do credor, dando a ele o direito real de propriedade.

É importante deixar claro que, em sua decisão, o STJ entendeu pela desnecessidade do registro para conferir validade e eficácia ao contrato com cláusula de alienação fiduciária entre o devedor e o credor, porém, considerou este mesmo registro como imprescindível para que seja seguido o passo a passo para a alienação extrajudicial do imóvel, uma vez que tanto a constituição em mora do devedor como a sua purgação pelo credor, são providências que ocorrem perante o Cartório de Imóveis.

Bibliografia:

- Dias, Nathália da Mota Santos. Apontamentos sobre a essencialidade e função social nos contratos existenciais. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2016. Disponível em: https://1library.org/document/y81k6g5z-apontamentos-sobre-essencialidade-funcao-social-nos-contratos- existenciais.html. Acesso em: 13/01/2024.

- Lei no 9.514 de 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9514.htm. Acesso em: 13/01/2024.

- Lei no 10.406 de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 13/01/2024.

- Siccardi, Fabiana Peixoto. Alienação fiduciária em garantia de bem imóvel: uma análise do instituto. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008.

- STJ. REsp No 1.866.844/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA TURMA, julgado 27/09/2023. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/documento_tipo=integra&documento_sequencial=210696386&registro_numero=202000625708&peticao_numero=&publicacao_data=20231009&formato=PDF. Acesso em: 12/01/2024.