ARTIGO PSJ
DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE BENS PÚBLICOS
1. Introdução | 2. Usucapião e a Legislação | 3. O Caso Concreto que Fundamentou a Decisão do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) | 4. Conclusão
1. Introdução
Falar sobre usucapião de bens públicos não é tarefa fácil. Embora a legislação federal seja taxativa no que tange à sua vedação, diversos são os casos concretos que movimentam o STJ para discutir essa temática.
No mais recente caso discutido pelo STJ, por meio do Recurso Especial nº 2173088 - DF (2023/0172594-0), a ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp, fez uma análise criteriosa do caso concreto, reiterando o entendimento de que é vedado usucapir bens públicos.
Referido REsp, por sua vez, trouxe algumas nuances no que diz respeito aos critérios de identificação de um bem público e é de suma relevância compreender o entendimento do STJ sobre o assunto.
Esse artigo, portanto, trata acerca da referida decisão do STJ e os mecanismos jurídicos foram utilizados para balizar tal entendimento.
2. Usucapião e a Legislação
A usucapião é um modo originário de aquisição de propriedade. Por meio deste procedimento, aquele ou aquela que cumpre determinados requisitos legais, pode transformar o seu direito possessório sobre um imóvel em direito de propriedade.
A Constituição Federal, em seu artigo 183, trata sobre o instituto da Usucapião. Notem:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Regulamento)
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O Código Civil, em complemento ao permissivo constitucional, estabeleceu as hipóteses de usucapião e, para fazer um paralelo com o caso concreto que fundamentou a decisão do STJ abaixo citada, é interessante elucidar a modalidade de Usucapião Extraordinária.
O Código Civil previu essa modalidade de Usucapião no artigo 1.238. Senão, vejamos:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Diante da legislação, é possível perceber que alguns requisitos precisam ser preenchidos para que, em seguida, o caso concreto seja analisado pelo julgador.
Por vezes, todos os requisitos são aparentemente preenchidos, mas com a análise da situação fática, é possível identificar que aquela usucapião não merece prosperar. E foi isso o que aconteceu no caso concreto analisado pela decisão abaixo.
O fundamento do STJ para negar a usucapião estava em dois pontos cruciais: (i) quem é o titular registral do imóvel, ou seja, quem aparece como proprietário na matrícula do imóvel e (ii) qual a destinação social daquele imóvel.
Isso porque, no caso concreto, o imóvel possui destinação pública e é de propriedade de uma sociedade de economia mista, logo, a legislação, especificamente no § 3º do artigo 183 da Constituição Federal, veda a possibilidade de usucapião de bens públicos.
As razões pelas quais o referido caso chegou até o STJ serão analisadas a seguir.
3. O Caso Concreto que Fundamentou a Decisão do STJ
A origem do Recurso Especial se deu em uma Ação de Usucapião Extraordinária. A referida ação foi proposta por WELLINGTON LUIZ DE SOUZA SILVA e KILZE BEATRIZ MONTES SILVA em face da COMPANHIA DE SANEAMENTO AMBIENTAL DO DISTRITO FEDERAL – CAESB.
Aqui, cumpre destacar que a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal é uma sociedade de economia mista, ou seja, uma entidade que combina a participação do Estado e de investidores privados em seu capital, que pode explorar atividades econômicas e que oferece serviços que, embora possam ser realizados pelo setor privado, têm interesse público ou estratégico para o Estado.
O cerne da demanda era garantir a aquisição originária de parte de um imóvel de propriedade da CAESB, sendo que restou claro para o STJ que o imóvel objeto da usucapião possui destinação pública, visto que atua na prestação do serviço público de saneamento básico, em regime não concorrencial, no Distrito Federal.
Tanto em primeira quanto em segunda instâncias, a demanda foi julgada improcedente sob o entendimento de se tratar de imóvel com destinação pública (serviço de saneamento básico) e ser ainda um imóvel de propriedade de uma sociedade de economia mista.
O objetivo dos requerentes da usucapião, ao interpor o REsp em análise, foi submeter ao crivo do STJ: a) a possibilidade, ou não, de usucapião de imóvel de sociedade de economia mista e b) se é cabível o pedido de reintegração de posse formulado na contestação pela sociedade de economia mista, quando a Ação de Usucapião vem acompanhada de pedido de manutenção da posse.
No que diz respeito à possibilidade de usucapião de imóvel de propriedade sociedade de economia mista, o STJ se posicionou da seguinte forma:
“O STJ tem o entendimento de que “a usucapião está claramente vinculada à função social da propriedade, pois reconhece a prevalência da posse adequadamente exercida sobre a propriedade desprovida de utilidade social, permitindo, assim, a redistribuição de riquezas com base no interesse público” (REsp 1.818.564, Segunda Seção, DJe 3/8/2021).”
“Ao interpretar o referido dispositivo, o entendimento adotado por esta Corte é o de que “bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista sujeitos a uma destinação pública podem ser considerados bens públicos, insuscetíveis, portanto, de usucapião” (AgInt no REsp n. 1.719.589/SP, Quarta Turma, DJe de 12/11/2018).”
“Na mesma linha, a Terceira Turma tem o posicionamento de que “os bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista não são usucapíveis quando sujeitos a uma destinação pública” (AgInt no REsp n. 1.769.138/PR, Terceira Turma, DJe de 31/3/2022).”
“Exemplo disso é que esta Corte, conforme julgamento no REsp n. 1.874.632/AL, firmou o posicionamento de que, “mesmo o eventual abandono de imóvel público não possui o condão de alterar a natureza jurídica que o permeia, pois não é possível confundir a usucapião de bem público com a responsabilidade da Administração pelo abandono de bem público. Com efeito, regra geral, o bem público é indisponível [...]. Eventual inércia dos gestores públicos, ao longo do tempo, não pode servir de justificativa para perpetuar a ocupação ilícita de área pública, sob pena de se chancelar ilegais situações de invasão de terras”.
“[...] Significa dizer que, aceitar a usucapião de imóveis públicos, com fundamento na dignidade humana do usucapiente, é esquecer-se da dignidade dos destinatários da reforma agrária, do planejamento urbano ou de eventuais beneficiários da utilização do imóvel, segundo as necessidades da Administração Pública” (por tudo, ver: REsp n. 1.874.632/AL, Terceira Turma, DJe 29/11/2021).”
Diante da argumentação supracitada, é possível perceber que o STJ já vem há um tempo decidindo sobre a prevalência do interesse da coletividade sobre o interesse particular, mesmo que envolvendo possível direito de moradia.
Conforme entendimento do STJ, os bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista ou empresa pública não podem ser objeto de usucapião quando sujeitos à destinação pública.
É ainda muito interesse vislumbrar o entendimento do STJ sobre a dissociação do Estado e de seus gestores. Ao tratar de bens públicos que possuem uma determinada destinação pública perante a sociedade, é necessário entender que a natureza pública do imóvel ultrapassa os poderes de gestão sobre tais bens.
Por vezes, um determinado gestor público pode negligenciar a gestão daquele ativo, mas a negligência do gestor não deslegitima o caráter público daquele bem. A coletividade, portanto, deve ser soberana. E, nesse contexto, mesmo que um bem imóvel tenha sido negligenciado por algum gestor público, a usucapião desse bem, ainda que preenchidos os requisitos legais, não deve prosperar, afinal de contas, o bem imóvel continua tendo natureza pública.
Já no que diz respeito ao cabimento de pedido de reintegração de posse, o STJ foi cristalino. Vejamos:
“10. Reconhecida a ocupação ilícita por particular sobre imóvel de sociedade de economista mista destinado à finalidade pública, a retomada do bem pela estatal é medida que se impõe independentemente de tutela jurisdicional, diante do poder-dever da Administração de proteger o patrimônio público e perante a autoexecutoriedade dos atos administrativos.
11. Conforme posicionamento desta Corte no julgamento do REsp n. 1.755.340/RJ, DJe 5/10/2020, “quem ocupa, usa ou aproveita bem público sem a imprescindível anuência expressa, inequívoca, atual e válida – ou além dos termos e condições nela previstos – da autoridade competente pratica esbulho, fazendo-o à sua conta e risco, fato que dispara uma série de providências, ora administrativas dotadas de autoexecutoriedade, ora judiciais”.
12. Inclusive, em casos de ocupação ilícita de imóvel público, a jurisprudência desta Corte tem reconhecido ao Poder Público não só o direito à reintegração da posse, como o direito de indenização, sob a forma de aluguel, como meio de evitar o enriquecimento sem causa do particular pela utilização irregular do bem público. Nesse sentido: EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp 1.985.936/SP, Segunda Turma, DJe 15/5/2024.
13. Na hipótese, o acórdão recorrido, ao afastar o direito de usucapião do imóvel, confirma o caráter irregular da ocupação pelos recorrentes e reforça o poder-dever da Administração (aqui representada pela CAESB): a) de adotar as medidas necessárias para a desocupação do imóvel, e; b) de cobrar eventuais ressarcimentos que se fizerem necessários para evitar prejuízos aos cofres públicos e para afastar o enriquecimento sem causa dos particulares.”
Nesse ponto, fica claro que, no caso concreto, o STJ entendeu que os requerentes da usucapião não eram sequer possuidores do imóvel, mas sim meramente detentores, o que, por si só, deslegitima o principal requisito da usucapião, que é a posse mansa e pacífica.
4. Conclusão
Diante de tudo que foi exposto, é importante concluir que a decisão do STJ foi mais uma ferramenta de legitimação do entendimento de que a análise da função social da propriedade atrelada à destinação que é dada aos bens imóveis é fator preponderante para admissão, ou não, do reconhecimento de propriedade por meio de usucapião.
Ainda cumpre ressaltar que a usucapião, bastante em voga no meio jurídico, é instituto que gera muitas discussões nos tribunais, em virtude de sua natureza complexa e de envolver casos fáticos dos mais variados. E, por essa razão, estar atento aos entendimentos do STJ sobre o tema é de suma importância para a advocacia voltada ao mercado imobiliário.
Bibliografia:
REsp nº 2173088 / DF (2023/0172594-0). Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=275287301®istro_numero=202301725940&peticao_numero=&publicacao_data=20241011&formato=PDF.. Acesso em: 04/11/2024
Site do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/10102024-Terceira-Turma-afasta-usucapiao-de-imovel-de-sociedade-de-economia-mista-com-destinacao-publica.aspx. Acesso em: 04/11/2024
Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 05/11/2024.
Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 05/11/2024.